Salvador Dali e Hitler

Lidia Zuin
3 min readJun 9, 2015

Um dos mais famosos artistas do movimento surrealista, o pintor catalão Salvador Dali sempre teve sua cota de polêmica. Além das histórias afetivas entre este e Federico García Lorca ou sua participação no curta Un Chien Andalou (1928), de Luis Buñuel, Dali também se manifestou quanto aos fascismos da época.

Enquanto o poeta era morto pelo regime de Franco, o pintor formulava frases como “Hitler me parecia ter umas costas muito comestíveis. Se pudesse teria tirado um pedaço das costas de Hitler, como um pedaço de queijo ‘A vaca que ri’¹” (AJAME, 1984, p.52). Isto é, pensamentos como este ou pinturas como O enigma de Hitler (1938), uma das mais notáveis entre as quais continham colagens ou pinturas do austríaco, puseram Dali em dúvida aos olhos do movimento. André Breton, por exemplo, sentia grande repulsa pelo catalão, especialmente por causa de sua obra O Enigma de Guillaume Tell (1933), no qual foi inserido o desenho da cabeça de Lênin.

O Enigma de Guillaume Tell (1933)

Na realidade, Dali se posicionava como um artista apolítico, apesar de já ter se rotulado como comunista e anarquista. Mas essa sua “indecisão” foi justamente o que acabou fazendo com que, superficialmente, ele parecesse ter ligações com o fascismo. Afinal, Dali, que também autor da frase “A beleza será comestível ou não existirá”, justamente reproduziu um desejo de se alimentar da carne do Führer. O fato é que o pintor achava na vida do ditador algo de surrealista, enxergando a abordagem do fascismo em suas obras como apenas uma menção à história — já que a política inevitavelmente faz parte dela. Em O Enigma de Hitler, Dali incorpou a atmosfera escura e lúgubre da época, transformando o quadro numa espécie de representação de necrópole. “O guarda-chuva pendurado na árvore era similar ao usado pelo premiê britânico Neville Chamberlain; e o telefone mole — erotizante para Dali — fazia referência à frustrada diplomacia que o líder inglês buscou para frear o expansionismo alemão. De acordo com Dali, o quadro profetizava a morte de Hitler e, talvez por isso, a fotografia do Führer situa-se sobre o prato acompanhda de alguns grãos de feijão, como a guarnição que acompanha uma porção de carne” (Folha, 2007). Enfim, independentemente de a citação ser uma apologia ou uma charada, acima de tudo, deve-se lembrar que Dali foi um provocador, alguém que cutucava e incomodava o inconsciente coletivo através de labirintos psicanalíticos. Tal investida em representar Hitler em suas pinturas foi a gota d´água para que ele fosse expulso do grupo de artistas surrealistas, mas o catalão também se aproximou de Franco. E, apesar do conservadorismo do ditador, a cena artística espanhola preservou uma autonomia relativamente grande, se comparada à forma como Hitler e Stalin agiam diante dos artistas conterrâneos. Referências Coleção Folha, Grandes Mestres da Pintura. 2007. Trecho disponível em <http://bronzeartes.blogspot.com/2010/02/o-enigma-de-hitler.html> AJAME, Pierre. As duas vidas de Salvador Dali. São Paulo: Brasiliense, 1986 KenG. The Enigma of Hitler. Disponível em: <http://efference.blogspot.com/2008/10/enigma-of-hitler.html> ¹ “A vaca que ri” é uma marca francesa de produtos de queijo produzidos pela Groupe Bel.

Originally published at kunstistkrieg.blogspot.com.br on June 9, 2015.

--

--

Lidia Zuin

Brazilian journalist, MA in Semiotics and PhD in Visual Arts. Researcher and essayist. Technical and science fiction writer.