Autora de “Capitalismo Gore”, Sayak Valencia propõe resistência através do transfeminismo
Texto complementar ao artigo publicado originalmente no TAB UOL.
* Aqui incluo algumas passagens que foram ocultadas do texto publicado no UOL por fins didáticos, mas que acho importante de serem compartilhados uma vez que podem interessar a quem estuda feminismo, decolonialidade e já está iniciada no tema.
Lançado em 2010, o livro “Capitalismo Gore” foi escrito pela filósofa transfeminista mexicana Sayak Valencia. Transfeminismo, no sentido adotado por Valencia, é um feminismo transversal, interseccional, que inclui todos os outros feminismos e não apenas o feminismo que se dedica à questão da transsexualidade, mas também.
Doutorada pela Universidade de Madri, Valencia ficou conhecida por fazer uma leitura crítica do capitalismo aliando feminismo e referências da cultura pop ao, por exemplo, emprestar o termo “gore” de um subgênero de filme de terror no qual entranhas e corpos se tornam pedaços que explodem pela tela. O ponto que Valencia quer trazer, nesse sentido, é como o nosso sistema político e econômico não difere desse imaginário do terror gore ao também tratar corpos (e, portanto, indivíduos) como pedaços de carne, em mercadoria passível de ser destruída e contabilizada a partir da lógica do que Achille Mbembe chama de necropolítica.
O diferencial de Valencia é que ela não estabelece diferença entre a lógica de uma corporação e do narcotráfico. Ao analisar o caso mexicano, a autora reforça o dito de que “o crime paga”. Afinal, o enriquecimento através do crime é “quase instantâneo” e o preço a ser pago por isso é “apenas” a necessidade de matar e morrer, um custo que nem é tão elevado “quando a vida não é uma vida digna de ser vivida senão em uma condição ultraprecarizada em torno de uma frustração constante e em um empobrecimento irreversível por outras vias”, ela escreve.
Consumidores consumidos
É a partir desse contexto que Valencia nomeia os membros do narcotráfico de “sujetos endriagos” ou sujeitos monstruosos, no português, uma vez que estes aceitam se tornar “ativos em sua relação com a morte” — seja a própria ou a alheia. Não é à toa que a santa padroeira dos narcotraficantes mexicanos é uma versão cadavérica de Nossa Senhora, a Santa Muerte. Por outro lado, Valencia ainda vê nessa lógica de funcionamento do narcotráfico, mas também do capitalismo, como um sistema patriarcal e machista que está enraizado na própria formação da sociedade mexicana.
Em entrevista ao TAB, Valencia explica que esse aspecto violento da cultura patriarcal é característico de uma afirmação binária de gênero masculino e que ele pode ser encontrado em qualquer lugar do mundo, mas é ainda mais marcante nos espaços pós-coloniais. Ele transparece não apenas nas instituições (narcotráfico, governo e corporações), mas também no imaginário popular — basta pensar na construção das personagens de séries de sucesso como “Breaking Bad”, “Better Call Saul” ou “Narcos”, por exemplo.
Em outras palavras, Valencia defende que vivemos em um sistema de hiperconsumo que se retroalimenta: para ser alguém no capitalismo, é preciso ter poder aquisitivo e status, dois ativos passíveis de serem conquistados no crime organizado ou então através da política e do empreendedorismo. Vemos no Brasil como o empreendedorismo se tornou uma solução ao desemprego e à crise econômica em especial para populações marginalizadas, como negros e pardos (que representam 2/3 dos desempregados no país), mas, para Valencia, esse tipo de estratégia nada mais é do que um sintoma de “triunfo do neoliberalismo.”
“O empreendedorismo é algo que busca romper com a memória histórica, com os processos de liberação da América Latina. Isso acontece também com os sujeitos monstruosos no México”, comenta a escritora. “Rompe-se o tecido social para que se capturem esses sujeitos e sigam reproduzindo os valores e as ideologias tanto de poder quanto de consumo e que o aparato siga funcionando a favor do sistema estatal, neoliberal, capitalista e, nesse sentido, cada vez mais fascista.”
Liberalismo autocrítico
Nesse ponto, observamos também como a publicidade atual já incorporou a lógica de incluir em seu imaginário a presença de populações marginalizadas e da narrativa de causas. Se, por um lado, termos como pink money ou greenwashing ganharam uma conotação negativa por uma suposta artificialidade na incorporação desses discursos e identidades no discurso publicitário, por outro, ainda assim temos esse tipo de agenda sendo debatido nos meios de comunicação.
Para Valencia, é possível de se ter uma leitura mais radical e crítica ao argumentar que causas não devem ser apropriadas pela publicidade e transformadas em produto, mas, em sua opinião pessoal, incluir esses assuntos pode ser uma forma de estimular o diálogo sobre essas populações, desde que as pessoas não sejam “coisificadas” e que não só a própria comunidade possa produzir esse tipo de conteúdo como também ser beneficiada pela iniciativa. Assim, a escritora se vê mais flexível diante desse assunto, mesmo porque vislumbra com otimismo a maneira como coletivos feministas e antirracistas têm usado as redes sociais, por exemplo, como formas de resistência e amplificação do diálogo.
O mesmo vale no que diz respeito ao feminismo liberal. Diante de grandes franquias, como os filmes da Mulher Maravilha ou Capitã Marvel, que vêm adotando um discurso feminista como estratégia de venda e engajamento, Valencia, na verdade, vê isso de um ponto de vista positivo conforme o feminismo liberal traz à tona também todos os outros feminismos — isto é, uma sensibilidade feminista que permite com que pessoas que outrora não se considerariam feministas consigam se identificar com essa agenda de alguma forma.
“O que me preocupa mais é a polarização do discurso liberal e sexista contra o discurso transfeminista ou outros discursos feministas que incluem as diversidades funcionais, com questões de classe e raça”, argumenta a filósofa. “Nesse sentido, o feminismo liberal tem a tarefa de fazer uma autocrítica, de ser um feminismo cuja agenda não se limite a querer ser igual em direitos e obrigações aos homens apenas em nível jurídico, mas sim incluir discussões muito mais complexas e que saem do binarismo.” Valencia, portanto, destaca uma distinção terminológica feita entre os feminismos mais hegemônicos, que trazem muito mais a perspectiva de uma “neoliberalização feminina” em vez de uma “liberação feminista”, como pode ser visto em outras vertentes mais interseccionais.
Mesmo assim, Valencia adverte perante as críticas ao feminismo liberal fazendo as seguintes perguntas: “Qual é a vantagem de se desarticular as alianças entre os feminismos? Como este feminismo liberal está sendo cooptado pelas instituições e pela direita para criar fraturas dentro do movimento?” Para a autora, no caso da América Latina, o feminismo liberal está muitas vezes sendo usado como um cavalo de tróia para desarticular outras lutas ao ser visto de forma repulsiva entre as feministas, sendo que, para Valencia, o feminismo não deve ser punitivista, mas sim autocrítico.
Resistência, palavra feminina
Assim sendo, a maneira como Valencia encaminha seu livro “Capitalismo Gore” é justamente diagnosticando essa prevalência do patriarcalismo na lógica capitalista que, por sua vez, pode ser combatido através de um feminismo mais propositivo e atuante como é o caso do movimento queer e do transfeminismo. Nesse ponto, a autora prefere seguir com sua própria vertente latinoamericana ao adotar uma lógica de ciborgue centroamericana segundo Chéla Sandoval em vez de se inspirar no xenofeminismo.
Para Valencia, o xenofeminismo nada mais é do que uma vertente que une o queer, o transfeminismo e que tem suas raízes nas propostas de ciborguismo de Donna Haraway, porém esta corre o risco de ser elitista e de se focar muito no hemisfério norte ao ter como base tecnologias de ponta que não condizem com a realidade latinoamericana. “No fim das contas, só estão dizendo o que já sabemos, só que em inglês e com sotaque europeu”, comenta a filósofa, que alerta para o risco de um novo tipo de processo colonizatório a partir da exacerbação tecnológica.
Nada de novo no Covid-19
Nesse ponto, Valencia também ressalta que a maneira como o coronavírus fez com que todo o mundo se deparasse com um verdadeiro risco de morte, algo com o qual as populações vulnerabilizadas já convivem todos os dias e que, nessa crise pandêmica, se intensificou ainda mais. O que a filósofa argumenta, porém, é que, na realidade, a necropolítica que se instaurou nos países de primeiro mundo já é algo que persiste nos países pós-coloniais há muitos anos (desde a “pandemia do colonialismo”) e, então, novamente, só se repetiu o que já sabíamos, mas em inglês e com sotaque europeu.
Assim, quando questionada se sua opinião estaria mais próxima da perspectiva de Slavoj Zizek ou de Byung-Chul Han a respeito de possíveis desdobramentos pós-pandêmicos, Valencia diz que não concorda com nenhum. “Ambos estão falando de um privilégio absoluto masculino e também europeu”, ela explica. “Em ambos os casos não há uma crítica direta à figura do autoritarismo vinculada à da masculinidade e da necropolítica como cartografia de governo internacional, que é o que temos visto que está acontecendo desde Trump até Bolsonaro, mas também com o golpe de estado na Bolívia e outros autoritarismos proliferando no leste europeu e no resto da Europa.”
Por fim, Valencia é pessimista ao observar que o mundo pós-Covid-19, na verdade, não irá revelar o fim do capitalismo senão uma maior precarização do trabalho com o fim da modalidade assalariada e da incrementação do modelo de plataformas e dos modelos de vigilância que fomentam os autoritarismos dentro dos Estados democráticos. “Assim vemos o fascismo dando as mãos ao neoliberalismo e trabalhando com o medo e o terror com uma argumento biopolítico e sanitarista para nos deixar confinados. Então aqueles que sonhavam que o Covid-19 seria um divisor de águas, na verdade, só estavam vivendo em um privilégio de forma fantasmagórica”, conclui.