A existência está nos likes de quem vê

Um ensaio sobre Holy Motors, Cosmopolis e performatividade¹ pós-redes sociais

Lidia Zuin
10 min readMay 10, 2022

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Aviso: O texto contém spoilers dos filmes Holy Motors e Cosmopolis. Ele também é uma tradução.

Holy Motors (2012) é um desses filmes que você gosta, mas não necessariamente entende. Só que, mesmo assim, esta não é uma obra totalmente ausente de sentido, ainda que algumas mensagens estejam encobertas por várias camadas de simbolismo.

O roteiro foi escrito para causar desconforto conforme assistimos às várias “encarnações” de Mr. Oscar (Denis Lavant), um homem capaz de se transformar em uma pedinte idosa, um pai levando a filha de volta para casa, e um cara bizarro que come flores mortas e circula pelos esgotos de Paris.

Mas há alguns momentos de clareza, como aquele em que uma espécie de gerente visita Mr. Oscar em sua limusine branca (transformada em um camarim móvel) para dizer que “algumas pessoas” estavam supostamente insatisfeitas com sua performance. Oscar argumenta que tudo está mais difícil, já que não se vê mais as câmeras, apesar de sempre estar sendo observado e, por isso mesmo, precisa continuar atuando. Essa é a beleza da performance.

— Beleza? Dizem que ela está nos olhos de quem vê.
— E se não há mais ninguém vendo?

Não é por acaso que o protagonista de Holy Motors tem o mesmo nome da maior premiação do cinema. Neste diálogo em específico, entendemos que Oscar está, de fato, atuando em papéis que são designados a ele, só que nunca descobrimos quem realmente Oscar é — talvez aquele indivíduo que existe entre uma performance e outra? A única pessoa que parece conhecer o “verdadeiro Oscar” é a motorista interpretada por Edith Scob, ou pelo menos ela é a única que parece se preocupar com o humano “por trás do ator”. Em todo caso, o show tem que continuar.

Holy Motors poderia muito bem ser usado como uma metáfora sobre a gig economy ao retratar um turno de trabalho que nunca termina e no qual o trabalhador precisa realizar variadas e desconectadas funções. Minha sugestão aqui, porém, é que o filme capturou muito do pathos que caracteriza as redes sociais na contemporaneidade, bem como a maneira através da qual elas impactaram a nossa existência e senso de performatividade.

O filme realmente parece um extrato dos principais teóricos de filosofia da mídia, já que ele nos leva diretamente ao ponto central de A Sociedade do Espetáculo de Debord e do conceito de modernidade líquida de Bauman. A obra também inevitavelmente nos suga para dentro do buraco negro aberto por Baudrillard e Adorno, no que diz respeito aos conceitos de simulacro e simulação, ou mais especificamente a ideia de hiperrealidade.

Se você pesquisar por hiperrealidade no Google, você encontrará exemplos como a Disney ou Las Vegas, um energético qualquer que tem um sabor inexistente como “rainbow icy berry”, ou uma árvore de natal feita de plástico que, no entanto, é esteticamente mais atraente do que um pinheiro de verdade.

Na hiperrealidade, nada é bom demais para ser verdade: é simplesmente verdade porque tudo é bom demais. Crescemos acreditando que a grama do vizinho é mais verde que a nossa e que Hollywood é uma fábrica de sonhos enquanto somos encurralados pelo faz de contas da publicidade e das celebridades.

Outrora restrita a espaços físicos como um estúdio, um set de gravação ou uma passarela, a geografia das mitologias midiáticas invadiu a nossa mente através de outdoors, rótulos de produtos, citações, jingles, tendências, histórias e comerciais multi/transmidiáticos. Só que, antigamente, existia algum tipo de curadoria ou, pelo menos, uma fronteira a ser cruzada antes de alguém abandonar sua humanidade para se tornar o que Morin chama de “Novos Olimpianos”. Com as redes sociais, Hollywood está só a alguns cliques de distância.

A cultura da influência social criou uma nova camada para a hiperrealidade, uma na qual o feed e os stories do Instagram são sempre melhores que a verdade ou verdadeiros porque são muito bons. Mesmo que já estejamos cientes sobre a artificialidade das redes sociais, nós ainda estamos lá e continuamos seguindo os bastiões dessa economia. Enquanto alguns elogiam essas pessoas por terem “usado o sistema” em benefício próprio, outros pedem por mais consideração, afinal, Olimpianos também são pessoas. Só que não.

Veja esse exemplo. O que era para ser um vídeo curto e casual de um homem apresentando sua namorada acabou se transformando em um conteúdo altamente performático e roteirizado que gera estranheza ao espectador. Muitos memes nascem dessa forma e assim viralizam se tornando material para remixes infinitos: trata-se de uma piada de muitas, infinitas camadas de performatividade. Mas é interessante ver como o meme da “namorada refém” inspirou outras pessoas a participarem da performance e do exagero ao ponto de fazerem referência a clichês do cinema de ação hollywoodiano. Talvez não estejamos conversando como os dubladores dos anos 90, mas certamente estamos reproduzindo as coisas que vemos na mídia — seja ela social ou não.

No Tik Tok, os usuários são encorajados a remixar conteúdos e, para isso, eles possuem ferramentas capazes de criar a “ambiência” necessária: fundo falso, modulador de voz, trilha sonora, filtros, funções de edição. No TikTok, Hollywood definitivamente está apenas a alguns cliques de distância. Mas ainda há espaço para o sarcasmo quando alguns conteúdos exageradamente encenados viram memes ou então quando criadores estão focados em desmascarar a performatividade das redes sociais.

Em Holy Motors, não há espaço para isso: ninguém pergunta por que Mr. Merde, um dos personagens de Mr. Oscar, corre por um cemitério, derruba pessoas e invade uma sessão de fotos. Na verdade, ele é até convidado a participar da sessão, já que os produtores acham que sua bizarrice iria tornar o projeto (e a performance) ainda mais atraente.

Apesar de inescrupuloso, Mr. Merde ainda é um ativo publicitário do mesmo modo que pessoas que se tornaram memes ou virais na internet, por qualquer motivo, acabam sendo convidadas a divulgar produtos e serviços logo após essa efêmera, mas efetiva fama explodir. Aliás, nem a morte escapa da lógica de performatividade em Holy Motors, já que conseguimos ver um túmulo onde não há o nome ou o epitáfio do falecido, mas um convite para visitar um site.

Mr. Merde não aceita participar da sessão de fotos como coadjuvante. Ele prefere sequestrar a modelo (Eva Mendes) e levá-la ao esgoto, onde ambos se transformam em retratos barrocos vivos.

Não importa o que ele faz com ela: ele pode rasgar o vestido da modelo, comer seu cabelo, carregá-la de um lado para o outro, mudar suas roupas, despir-se em frente dela; ela nunca diz nada, pois é apenas um receptáculo, um manequim que veste a roupa e faz as poses no cenário roteirizado por alguém. É como se estivéssemos assistindo a um episódio de America’s Next Top Model em que a competidora precisa incorporar Maria e simplesmente aceitar seu destino.

Depois do Harlem Shake, não dá mais para saber se estamos no meio de um flash mob, uma performance artística ou se simplesmente demos o azar de estar sob a mira da câmera de um TikToker. Não é a toa que Holy Motors inclui uma breve cena que transforma o filme momentaneamente em um musical conduzido por Kylie Minogue — afinal, musicais são a epítome da hiperrealidade conforme o formato é totalmente baseado em uma premissa falsa e inverossímil, mas não menos desejável. O que High School Musical foi para os Millennials está para o que o TikTok é para a Geração Z.

Se é verdade mesmo que nós nunca somos “nós mesmos”, uma vez que somos a combinação do ego, id e superego, não estamos todos performando o tempo todo, então? Não estamos todos vestindo máscaras e interpretando personas? O tweet acima inclui uma foto de uma mulher que fotografou outra mulher lendo um livro em um bar, e a legenda sugere que a pessoa só estaria fazendo isso para chamar atenção. No Tumblr, porém, lembro de ter visto alguém dizendo algo como “imagine odiar tanto a si mesmo que você acha que todo mundo está fingindo”. Mas… não estamos?

Performando no capitalismo

Curiosamente, Holy Motors foi lançado apenas alguns meses depois do filme Cosmopolis de David Cronenberg, uma adaptação do livro escrito por Don DeLillo em 2003. Em ambas as obras, temos limusines brancas conduzindo o protagonista através de grandes cidades, Paris e Manhattan.

Em Cosmopolis, vemos o mundo ruir conforme o capitalismo finalmente colapsa. Vemos um jovem milionário, Erik Packer (Robert Pattinson), atravessar o caos só para cortar o cabelo em um canto da cidade. Durante o trajeto, ele é visitado por assessores, médicos, amantes. É nesse ínterim que ele descobre não ser mais milionário, já que o sistema com o qual ele cooptava foi destruído, que sua próstata estava assimétrica (um possível sinal de câncer) e um grande amigo havia morrido.

No artigo Alegorias do contemporâneo: um diálogo entre Cosmopolis e Holy Motors (2016), os autores apresentam uma análise de ambos os filmes, sinalizando semelhanças e diferenças na maneira como as obras tecem uma crítica ao capitalismo tardio e à tecnologia. Os dois longas se passam em um futuro próximo caracterizado por dispositivos tecnológicos bastante factíveis e que mediam a interação entre os personagens e o mundo.

Ambos Holy Motors e Cosmopolis possuem limousines brancas que funcionam como casulos para proteger os personagens do mundo externo. É o refúgio de Mr. Oscar entre uma performance e outra e um abrigo do caos para qual Packer quer se debruçar

No artigo, os autores mencionam a cena na qual Packer atira em seu segurança, escolhendo assim escapar de seu mundo de faz de contas. Eles também descrevem como a aparência física de Packer (roupas e cabelos) fica cada vez mais desordenada, tal qual as atitudes do personagem. Mesmo diante do perigo verdadeiro, Packer decide atirar em sua própria mão, assim como se o ato fosse funcionar como um interruptor de luz quando estamos sonhando. É só quando ele vê o buraco de bala fumegante em sua mão que ele volta a si mesmo e percebe que tudo sempre foi real, não importa o quão artificial parecesse.

De forma semelhante, em Holy Motors, tudo e nada é real. Quando achamos que Mr. Oscar está finalmente voltando para casa depois de seu último compromisso, descobrimos que aquilo era também um trabalho e que a motorista irá voltar no dia seguinte, no mesmo horário, para a mesma rotina. Depois de estacionar a limousine em uma garagem de carros idênticos, a motorista veste uma máscara que faz menção ao personagem interpretado pela atriz no filme Eyes Without a Face. Será, então, que ela estava indo para outro compromisso, no qual assumiria outra personagem que não a motorista?

Reality shows como metáforas metásticas

É só durante os últimos trabalhos que vemos Mr. Oscar “saindo de cena”. Antes disso, vemos ele tomando um tiro e quase não conseguindo retornar à limousine. No entanto, quando está a interpretar um homem em seu leito de morte, Mr. Oscar aguarda apenas alguns segundos até a “cena ser cortada” e assim poder deixar o set, despedindo-se da outra “atriz” que permanece ainda, por mais um tempo, na personagem.

Até esse momento, eu estava me perguntando se as pessoas com quem o Mr. Oscar interage, na verdade, estavam o contratando para “reviver” ou viver certas experiências como em um escape room ou em uma casa mal assombrada em parques de diversões. Mas logo percebemos que essas outras pessoas também estão fazendo parte do ato, sendo filmadas por câmeras que ninguém consegue ver. Antes, com sorte, as celebridades conseguiam ver um paparazzi à espreita; agora, todo mundo tem uma câmera dentro de seu bolso, pronta para capturar tudo e todos, famoso ou não.

Assim como Mr. Oscar vive o mundo como se estivesse em um reality show, hoje assistimos ao BBB menos pela sinceridade e “humanidade” dos participantes do que por sua performance. Não faria mais sentido, hoje em dia, dar a vitória para um cara aleatório que chora de solidão e transforma uma vassoura em uma boneca (e não teria sido isso mesmo também uma performance?). Hoje, assistimos ao BBB pela “estratégia” ou pela performance dos participantes (ou atores). Não é coincidência que as edições mais recentes do programa têm incluído competidores que são, de fato, atores, cantores ou influenciadores digitais.

Quando entrevistado após ser eliminado da casa, um participante da última edição (que também é influencer) mencionou que nada mudou para ele, desde que participou do jogo — talvez por que ele nunca deixou de atuar com seu personagem, do qual talvez nunca abrirá mão? Na verdade, esse participante está até vendendo um pacote de férias com ele por vários milhares de reais.

Na era da fama algoritmica, tudo é performance, mesmo quando não é. Os autores de Alegorias do contemporâneo sugerem que tanto Holy Motors quanto Cosmopolis criticam o capitalismo tardio ao explorar a liquidez e rarefação da vida contemporânea:

No império do niilismo, as garantias existenciais estão todas suspensas. A tensão estabelecida pelas películas aponta o desafio de lidar com o niilismo cada vez mais disseminado: sucumbiremos ao caos ou encontraremos meio de realizar a aprovação da existência, o amor fati como escolha possível?

Para Vilém Flusser, causalidade ou destino não existem: tudo é caótico, aleatório, impossível de ser explicado ou escolhido, já que livre arbítrio também não existe. Para o autor, a vida é uma caixa preta e nós não sabemos como ela funciona, mas ainda assim continuamos atuando (performando) na frente de câmeras/aparelhos (visíveis ou não) e interpretando nossos vários personagens.

Uma pessoa não é simplesmente uma mãe, uma esposa, uma mulher, uma irmã, uma filha, uma escritora, uma dançarina, uma pintora, uma artesã, apesar de tentarmos consolidar nossa existência em formas tangíveis à medida que nos moldamos nos algoritmos. É a parte que me faz escritora o papel que escolhi exercer aqui, porque são os seus likes e suas visualizações que me servem de prova de que ainda há um observador e que a minha existência está nos likes de quem (l)ê.

¹ O termo performatividade aqui está sendo usado enquanto performance como atuação ou fingimento e performance enquanto forma de obter resultados ao realizar determinada tarefa.

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Lidia Zuin

Brazilian journalist, MA in Semiotics and PhD in Visual Arts. Researcher and essayist. Technical and science fiction writer.